Thursday, June 15, 2006


As minhas razões

As minhas amigas – pelo menos as mais próximas que sabem da notícia – andam emocionadas. Afinal, como a Cathy das bandas desenhadas, eu quero-me casar depois de muitos anos a dizer que não casava. Mas há um dia, não sabemos bem quando nem como, sabemos só porquê, em que nos deixamos embalar não pela onda das nossas amigas, mas pelos nossos próprios sentimentos, que a várias conclusões nos podem levar, mas que, inevitavelmente, nos levam ao mais óbvio: querer partilhar a vida com uma pessoa. Isso não acontece só porque dá jeito, só porque os outros querem, só porque há interesse implicado nisso ou, em última instância, porque não queremos passar a vida sozinhos. Perguntem-me, eu conheço imensas pessoas que casaram por isto. Não são as minhas razões. Não tenho medo da solidão, os meus interesses materiais são reduzidos e pouco ambiciosos, e tudo o que tenho feito, na vida, tem sido construído com as minhas capacidades. Por isso, para o Pedro só sobra afectividade, que é, afinal, a melhor parte das nossas vidas. Em todo o caso, para mim o amor é incondicional. Não se expressa por exigências tolas ou interesses materiais. O amor «não dá jeito» na vida, apenas encaixa no coração. Isso basta-lhe. Menos que isso pode ser tudo, menos amor. É a minha explicação.
Eu sempre disse que não me casava, mas isso não tem a ver com não querer partilhar a vida com uma pessoa. Sempre achei o casamento tolo, um bocado bacoco, até no seu simbolismo, de a noiva passar para a família do noivo, de as famílias se unirem, etc. Não sejamos hipócritas. Há imensas coisas que não têm de encaixar só porque casámos. Tem de haver tolerância, mas não estupidez. Claro que há um percurso que escolhemos, e isso implica a presença das famílias, para o bem e para o mal. Mas há coisas que jamais voltam aos seus lugares.
Depois de muitos anos a conviver com um conceito de casamento perfeitamente desgraçado e funesto para a mulher (ser empregada doméstica, servir o homem, servir a família dele mais a nossa mais os filhos, etc.), observo que algumas das minhas amigas deram um passo em frente e fizeram dos «meninos da mamã» homens de verdade, desses que são pais e que passam a ferro, cozinham, mudam fraldas, sem qualquer problema. Isso permite à mulher ser mulher, e sobretudo, não estar sozinha num percurso a dois. Depois de anos a fio a ouvir a minha avó dizer que com o casamento uma mulher está mais protegida (depende do ambiente em casa!), e passa da alçada do pai para a do marido (coisa que ela, pelos vistos, nunca fez), agora percebo que acumulei durante muito tempo uma ideia nefasta, vazia e amarga do casamento. E mesmo hoje, passados todos estes anos, conheço muitas pessoas infelizes no casamento, mas também muitas pessoas felizes, que me transmitem a ideia de que esse apoio é fundamental.
Dantes, casar era uma belíssima maneira de sair de casa. Hoje uma mulher não precisa disso. Se calhar por isso é que passou a ser tão importante e tão mais raro as pessoas casarem por amor. Digo por amor, porque casamentos por dinheiro houve e haverá sempre. Só que também estamos na era em que as mulheres já ocupam cargos de poder e até ganham mais do que os homens (maridos).
Não me agrada muito ser uma «pertença» de alguém, marido, amigos, famílias. Isso nunca vou ser. Mas apetece-me que a minha família ocupe o lugar de minha família em paralelo a uma nova vida, a uma nova família, construída por mim. Por isso vou mudar de nome, somando dois nomes ao meu. Isso significa o que sou somado ao que vou ser. É simbólico. Significa mais trabalho para mim, evidentemente. Se alguém pensa que o meu conceito de casamento é o facilitismo engane-se. Eu sei muito bem o que é pertencer a uma família, quanto mais a duas…
Passei uma fase, na minha vida, que nem podia ver alianças à frente e irritava-me imenso os pares de namorados, as conversas amorosas, o «amorzinho, anda cá», como se os namorados fossem animais domésticos. Mas também passei uma fase de enorme solidão, em que me sentia literalmente suspensa da vida, como se tivessem feito um intervalo na vida que eu tinha. Eu estava sempre em esforço para esse intervalo acabar. Durou muito e eu aprendi que a espera é essencial para quem se esforça, faz parte, é um processo de aprendizagem chato, mas necessário. Hoje estou a meio caminho. Metade de mim ainda está muito vazia e precisa de muito trabalho técnico, espiritual e físico. Mas a outra metade está muito bem, está harmoniosa e decidida. E é com a parte mais completa que eu tento amar, para que o amor não sirva para encher espaços vazios, que para isso não serve.
A certa altura da minha vida eu entendi porque se casam as pessoas. Ainda penso muito que tenha a ver com expectativas. Mas como se explicam casos fantasmagóricos como o meu, que de repente comecei a querer-me casar, e não atribuo isso a querer sair de casa, porque essa é coisa que sempre quis?? Porque o significado de casamento também tem a ver com experiência de vida, e não só com a educação. E tem a ver com instinto, que se desenvolve na vida, quer queiramos quer não. Dantes, o meu conceito de casamento retirar-me-ia verdade e sensatez. Hoje, o meu conceito de casamento soma um ponto ao que sou, em direcção à minha autenticidade. E se eu jurei a mim mesma verdade, é lógico que me case.
Se é verdade que as pessoas quando se casam têm de ceder a muitas coisas, também é verdade que têm de puxar uma pela outra, completarem-se, fazerem-se à estrada juntas, combaterem juntas os fracassos. E na verdade, manterem-se fiéis ao que são, como mulheres, amantes, amigas, (como homens, amantes, amigos) não ficarem truncadas pelo casamento, não se fecharem em copas, desnecessariamente.
A casar também devemos ser autênticos. Nunca vi o festanço e os rios de dinheiro que se gastam nisso como essenciais. Compreendo o significado e sei que é normal querermos familiares e amigos junto de nós, porque é um dia importante. Mas nem sempre isso é fiel ao que somos, muitas das vezes é fiel ao que os outros querem de nós. E eu também não concordo com isso. A minha vida, bem como a vida do Pedro, pautam-se pela descrição. Hoje em dia criou-se um certo horror ao discreto, ao sóbrio, àquilo que é leve. Gosta-se de tudo carregado de emoções, de cores, de locais, de fotografias, de marcas de tempo e de espaço. Será que a memória já não chega? Para mim sempre bastou.

Tuesday, June 13, 2006


A família

Quando falo dos meus problemas familiares, todas as minhas amigas e todos os meus amigos têm a mesma resposta: as famílias são todas iguais. Embora eu não ache bem que todas sejam assim, conheço muitas bem piores do que a minha, naturalmente, e acho mesmo que há aspectos dos quais não tenho a mínima razão de queixa.
Em primeiro lugar, ninguém escolhe família. Ninguém escolhe nascer, eu acho, excepto para quem acredita no contrário. Há budistas convictos que reencarnamos e que escolhemos a família para aprendermos uma lição qualquer. Mas vamos pôr estes de lado. Mesmo que seja assim, eu reitero sempre que não nos lembramos dessa tal vida anterior, só temos «reminiscências», por isso de nada vale andarmos à pancada com teorias destas.
Em segundo lugar, há pessoas que nada têm a ver com a família que lhes calhou na rifa, nada mesmo. É o caso de pessoas ultra-dependentes com pais que não educam desse modo, ou vice-versa, de pessoas independentes que foram educadas para depender e não sair de casa. Outros, mais azarados, têm famílias de toxicodependentes ou abusadores violentos. Esses são realmente os casos mais injustos. Que faria eu numa família dessas? Quem seria eu hoje? Conheço casos desses, embora escassos e distantes, de pessoas que têm pais violentos. São pessoas muito diferentes, com imensos problemas, e para terem uma vida dita «normal» têm de se esforçar muito mais.
Em terceiro lugar. As famílias vêm todas de Marte. Se não fosse assim, como explicaríamos a proliferação de sitcoms americanas e britânicas acerca do assunto? E são engraçadas. A que menos gosto é a «Dharma&Greg», um casal antitético, com famílias díspares à força toda. Ela provém de uma família «hippie» e trata os pais pelos nomes próprios, ele provém de uma família rica e superficial, em que todos se tratam por «você». Embora apeteça bater na Dharma, por ser tão parva, as famílias têm a sua graça. Mas a série «Todos amam Raymond» tem uma vertente cómica mais inteligente. Raymond tem três (quatro?) filhos, vive com a mulher, mas a torto e a direito aparecem os sogros e o irmão em casa, cada um com uma ideia mais estúpida do que a outra. E que dizer de «Archie Bunker»? Ou do «Cosby Show»? Ou do «Príncipe de Bel-air»? Todas se baseiam em famílias estapafúrdias. Excepto, claro está, o «Seinfeld», ou a série «Friends», que são engraçadas, mas baseiam-se em grupos de amigos/vizinhos, e não familiares.
Porque é que as famílias têm tanta graça da televisão, mas na vida real nem por isso? Na televisão até tem graça o Raymond ter os pais sempre metidos dentro de casa, mas na vida real…E as diferenças entre os pais de Dharma e de Greg encaixam na perfeição (assim como o casal principal), mas na vida real parece-me bem que nunca resultaria. Qual seria o advogado de sucesso, rico, que se deixava levar por uma paixão assolapada por uma instrutora de ioga completamente maluca, com pais mal comportados que gostam de andar nus pela casa?
As famílias reais que eu conheço são muito parecidas. Regra geral os pais dependem dos filhos e os filhos dos pais (na minha humilde opinião, em demasia), às vezes os avós andam metidos ao barulho, sem saber para onde ir. Quando alguém adoece é culpa de todos. Toda a gente se mete na vida de toda a gente. Os pais e avós desenham expectativas irreais para a vida dos filhos/netos, procurando que eles sejam tal e qual imaginaram, e se não forem têm logo «um desgosto». Hoje em dia temos medo de ser nós próprios, o que somos, genuinamente, a nossa essência, aquilo em que acreditamos. Fazemos demasiado o que os outros esperam de nós, e pouco aquilo em que acreditamos. Na realidade, nenhum pai ou mãe morre de desgosto se um filho casar com quem não querem, ou sair de casa, ou tiver um emprego diferente daquilo que era esperado, ou não tirar um curso. Um pai ou mãe deveria morrer de desgosto se o filho ou filha não pensasse pela própria cabeça. Isso, se eu fosse mãe, far-me-ia vacilar e entristecer.
É um bocado parvo pensarmos sempre que vamos desiludir pais e avós. Claro que isso afecta, cria mau ambiente. Há famílias em que é impossível pensarmos pela própria cabeça. Há famílias que não aceitam que a vida tem um rumo, flui de uma maneira diferente da sua, que a vida dos filhos pode ter outra dinâmica, já que o tempo histórico e o tempo discursivo mudaram desde a sua juventude. É chato pensarmos que somos espartilhados pelos pais, pela educação que tivemos e andar à espera de um milagre para mudar a mentalidade deles, coisa que nunca acontecerá. Muitas vezes parece que ninguém percebe que a vida muda a todos os segundos e milionésimos de segundos. Que a vida amanhã não é igual à de hoje. Amanhã a expectativa muda. Por isso, como é que as ideias, as ideologias, as maneiras de ser e de estar podem ser as mesmas? Como dar às famílias o que elas querem sem desvirtuar o que somos?
Há coisas na vida que não entendo, nem nunca entenderei. Não vale a pena fazer terapias cognitivas, psicoterapias, terapias alternativas ou ler inúmeros livros de auto-ajuda. Bem sei. Quem tem de mudar sou eu, não o mundo. Por isso toda a gente me diz: "Mas ainda te chateias com isso?". Eu explico do que é que estou a falar, dos impostores. Há por todo o lado essa corja de gente, mas bolas, poupem-me, na vida pessoal e familiar é que não! Todavia, quem somos nós para escolher de quem os outros hão-de gostar? Pode parecer-nos injusto, perda de tempo, manipulação contínua e agravada, mas é assim: não se toca nos sentimentos dos outros. Como mandar nos outros? Como abrir-lhes os olhos? Inútil. Não podemos escolher uma madrasta, padrasto, sogros, cunhados…são escolhas dos nossos familiares. Por isso, quando algum dos supracitados entra, há um abalo tremendo nas nossas vidas (a minha cunhada que o diga…), porque os loucos duplicam. Mas temos de ser razoáveis. Há entradas na família que são soberbas, trazem lufadas de ar fresco e, embora não mudem as estruturas antigas em que vivíamos, são bem vindas. E depois há as entradas pós-fabricadas: as crianças, sempre bem-vindas à família – novos primos, sobrinhos, irmãos, netos, etc. dão uma outra cor, um outro ânimo à família, e escusa a minha avó de dizer, em voz trémula: " Somos tão pouquinhos!...".
Não podemos escolher pais, avós, irmãos. É o nosso grande primeiro exercício de flexibilização de personalidade, de aceitação do outro: aceitá-los como são – loucos, casmurros, atrasados mentais, maus feitios. Na dinâmica, toda a gente é bem vinda, menos os impostores. São as entradas familiares «forçadas». As pessoas que entram e de quem não gostamos nada. As pessoas que quase entram, mas à última da hora se escapam por entre os dedos. As pessoas que entram e saem (algumas são impostoras, mas outras não). Todas as pessoas que entram por interesse, dinheiro e uma grande lata. Todas essas deviam ser proibidas de entrar, para que o clã se preservasse bem disposto. Todavia, o clã sofre abalos, rupturas, rompimentos, mudanças contínuas, e mesmo assim tem de sobreviver, o mais incólume possível. Naturalmente que não sobrevive igual. Mas é essa a dinâmica da família: diminuir, mudar, crescer, evoluir.

Tuesday, June 06, 2006


O dia, o mês e o ano

Se para muitos de nós os dias, os meses e os anos se sucedem, por muito que assim seja, sabemos sempre que há um ou outro que não esquecemos nunca. Pode ser o dia dos anos, porque gostamos de fazer anos (eu gosto do meu dia), pode ser o dia do nascimento de um filho ou do nosso casamento (essas datas não tenho, mas tenho memorizada a data de nascimento do meu sobrinho). Pode ser o dia em que começámos a namorar.
Este mês para mim é desastroso. Junho é o mês da morte da minha mãe. E todos os dias me fazem recordá-la, talvez hoje com mais clareza do que nunca, pela dureza que estes últimos anos me têm trazido, em dor, em mágoa, em consequências desastrosas.
Já tive várias conversas acerca disto com muitos dos meus amigos, e tenho sido certa naquilo que penso: o que receio que aconteça é mesmo o que acontece. A minha vida tem tido sempre essa história. Por isso, ou tenho costela de bruxa e sei o que se passará, pelo menos na minha vida, ou simplesmente porque penso acontece, puxo os acontecimentos (mas se fosse assim, as coisas boas também teriam de acontecer, certo??). Na minha vida, as coisas boas demoraram sempre muito mais a acontecer do que as más. Ou talvez seja a minha experiência, a minha subjectividade a falar. Talvez seja uma sensação apenas, e as coisas boas estejam equiparadas às más. Como pessimista absoluta, eu só penso nas coisas más. Acho sempre que as boas ainda não começaram a acontecer, ou começaram devagarinho.
Aquilo que para uns seria mais um dia quente de Junho, para mim foi o dia da prova de Português dos meus alunos do 9º E, à qual eu faltei por estar no enterro da minha mãe. Razão sobejamente dura para ter marcado toda a minha vida com ferro em brasa.
Às vezes sinto-me uma mulher muito queixinhas. Sinto que me queixo de tudo aos amigos todos. Quando era católica queixava-me tanto a Deus que Ele deve ter ficado surdo (ou mandou Jesus, o filho, ir falar com a Solnado…). Mas já concluí que não expresso nem metade do que sinto, o que me leva a crer que não sou queixinhas (um queixinhas de verdade hiperboliza a realidade tanto quanto pode), sou muito sensível. As coisas, por mais pequenas que sejam, doem a sério. Parecem pontas de cigarro a fazerem feridas na minha pele. Neste caso na alma.
Para além de toda a tristeza que a morte inflige e do luto, que, além de duro, é prolongado ad aeternum, há mudanças estruturais na vida que nunca mais esquecemos. E há coisas que achamos que nos acontecem aos dez anos, mas que aos vinte e quatro já não, como ficarmos a tomar conta das pessoas. Mas eu fiquei. Eu que sempre fui uma rebelde dada às lides intelectuais, nada vocacionada para o mundo doméstico (a minha casa é a prova disso), de repente vi-me a braços com uma casa tão caótica quanto a minha própria cabeça, que vagueou muitos e muitos anos por mundos estranhos (há fotografias dessa altura que eu nem me lembro de ter tirado, há coisas que não me lembro de ter feito e há pessoas que preferiria não ter conhecido).
Enquanto o meu pai achava graça a tudo (talvez como meio de se inteirar daquela dura realidade), contando piadas, às vezes hilariantes, acerca de vizinhos que falavam da minha mãe ou faziam pedidos estranhos, eu estava arrasada, tão arrasada que recorri a ajuda dita «técnica», para ver como era olhar um luto de fora, para ver o que dizia o psicólogo e o psiquiatra acerca do assunto. Na altura fiquei surpreendida por ser vista como uma pessoa «solitária e muito séria», coisa que eu nunca achara sobre mim própria, porque estava sempre a brincar e, embora gostasse muito de fazer coisas sozinha, também adorava companhia. Fiquei surpreendida de me dizerem que eu deveria abranger no meu núcleo mais amigos. E fiquei muito surpreendida por ambos me acharem inteligente, ao ponto de ser capaz de escrever uma tese ou escrever um livro, ou dar aulas numa universidade. Eu não me achava capaz de nada disso, e não me acreditava capaz de escrever uma tese, embora já contasse com alguns livros na gaveta.
Os anos que se seguiram a 2001 foram arrasadores, desconexos, muito tristes para mim. Descobri o significado da palavra «desemprego» com todas as letras (que só há bem pouco tempo mudou). A palavra «espera» também se tornou sinónimo de «infinita». A palavra «medicamento» tornou-se sinónimo de «diário, quotidiano». A palavra «amigo» tornou-se imprescindível. Mas descobri outra coisa: que tinha entrado na idade adulta e estava sozinha na minha descoberta do que era ser adulto. Ser adulto implicava, acima de tudo, não permitir que os outros nos espezinhassem. E isso eu deixei muitas e muitas vezes e, como a minha aprendizagem não está completa, continuo a deixar. Não fico alegre. Fico triste com a minha cobardia, ainda hoje. Antigamente atribuía essa cobardia a ingenuidade – fazia sentido – e à minha fragilidade por causa do luto. Mas hoje em dia, que sou mais forte e mais adulta, atribuo à minha burrice o facto de dar (ainda) muita confiança às pessoas, de achar que a opinião delas pode, sequer, ser importante (mas quando e onde é que me convenci que certas opiniões são importantes??). Estou ainda presa a essa armadilha da baixa auto-estima, e da imagem que em casa têm de mim, como serviçal obrigatória, substituta indigna da minha mãe, porque não faço nada tão bem como ela – o que é uma boa verdade, mas também é bem verdade que não quero fazer nada como ela, nem quero fazer as opções dela, e por isso, quando me sinto a experienciar coisas semelhantes, que me deixam infeliz e perdida, fujo a sete pés.
Aprendi que muitos dos nossos monstros não se podem enfrentar de uma vez só. E que muitos exigem que nos afastemos e sejamos nós próprios, independentemente de os outros gostarem ou não. Um dia, numa sessão, a psicóloga perguntou-me porque é que eu me torturava a ir a almoços e jantares que detestava, se odiava isso. Com a idade que já tinha, eu era obrigada a ir, na realidade tratavam-me (e tratam) como se fosse criança. E eu sempre odiei isso. Por isso, de há uns anos para cá, tenho assumido completamente que não posso gostar das coisas só porque os outros querem. Nem fazer porque os outros querem. Claro que tenho imensos problemas…mas não será este o caminho em direcção a mim própria, a ser o que sou como quero? As pessoas dão-lhe o nome de «mau feitio» ou de «orgulho» ou «falta de paciência», mas onde raio está escrito que temos de aturar pacientemente ofensas contínuas ou rebaixamentos injustos? Toda a minha vida tive de ouvir que era menos por ser mulher, por ser mais nova do que o meu irmão, por não ter emprego, por não ter vida própria…mas que raio de argumentos são estes? Nada disto tem a ver com falta de inteligência, falta de capacidades, falta de força de vontade, falta de trabalho. São apenas circunstâncias. Terei pedido para nascer mulher, irmã mais nova? Terei pedido para perder o emprego de que tanto gostava e ter escolhido uma profissão azarada e sem futuro? E o que é falta de vida própria? Seria mais respeitada se fosse casada e tivesse filhos, ou teria exactamente o mesmo papel na família? Nada disso redimiu a minha mãe, casada e com filhos, de ter de, única e exclusivamente, tratar dos outros sem respeito nenhum por ela própria. Se eu tiver de morrer por um sonho (como ela), que seja o meu, aquele que eu escolhi, e não o papel que os outros escolheram para mim.
Todo o meu percurso actual tem a ver com a morte da minha mãe. Antes disso, o meu percurso tinha a ver com terminar o curso, ter um namorado, sair de casa. Se a minha mãe fosse viva, muitas coisas não se teriam passado, essencialmente graças à força de espírito dela, que tudo aplacava. Como ela não está comigo, sem ser por sentimentos, eu tive de fazer esforços brutos, diários e persistentes, para poder simplesmente ser quem sou e conseguir, com quase trinta anos, sair da minha casa, em direcção ao que quero. Não sei se é em direcção à normalidade – para mim, isso só existe na vida de algumas pessoas, aquelas que nunca passaram por nada parecido ao que eu passei ou por nada que as fizesse reavaliar o que são – mas tento sempre que não seja em direcção oposta ao que mais desejo.
Com o passar dos anos, tornei-me muito mais radical com as pessoas. Distingo-as melhor, engano-me menos. Mas continuo a enganar-me muito, continuo a suportar muita arrogância, muita falta de coração, muita imbecilidade e muita traição. Faz parte da vida – agora eu sei isso – da vida de quem se esforça pelos trilhos da dignidade e não sai fora desse mundo repetitivo do amor e da honestidade. Estou certa de que o mundo não é justo. Para mim, teria sido muito (mas muito) mais fácil aprender todas as lições da vida com brandura, doçura e sem sentir a morte por perto. Estou certa de que um caminho fácil teria feito de mim uma outra pessoa, se calhar com outras opções de vida. Mas o esforço também me moldou o carácter.
Diz a minha amiga Sofia, não podemos achar que temos valores mais válidos do que as outras pessoas. Só porque colocamos o amor em primeiro lugar, isso não faz de nós pessoas melhores. Mas não posso concordar com a Sofia. Quem põe o amor em primeiro lugar, como ela e eu sempre fizemos, para mim tem mais valor, mesmo que sofra mais. É o meu grande julgamento da humanidade. Sou adulta e posso fazê-lo. Todos os que agem abaixo disso, estão a apostar na mediocridade do conforto, do dinheiro, dos interesses múltiplos. Pode ser um caminho de felicidade, todavia para mim é ignoto e é tabu. Não quero conhecer esse caminho. Parece-me sobejamente fraco. E quem se apercebe, como eu me apercebi, de que a vida é muito curta, muito dura, e escapa-se em segundos, não pode dar-se ao luxo de se desperdiçar em coisas menores. Infelizmente, eu desperdiço-me a pensar nelas.
Passados estes anos todos, quase tudo o que eu previa (e mais temia) aconteceu. Quase tudo o que a minha mãe previa (e mais temia) aconteceu também. E os conselhos da minha mãe foram preciosos, porque me orientam todos os dias, e me ensinam o valor do instinto, do apuramento do sexto sentido, que por vezes nos defende das ameaças mais estranhas.
Gosto muito daquela teoria estupenda que os actores têm, a fim de justificar quem fica no meio artístico: eles dizem que os actores maus são levados pela maré e só ficam os bons, só esses são reconhecidos, com o passar dos tempos. Gostaria muito que com as pessoas e as atitudes fosse o mesmo. Mas muitas vezes parece-me que esta teoria é contrária à realidade: parece-me que ficam as piores pessoas à tona e as outras simplesmente desaparecem ou não são valorizadas, ou morrem. Tenho tantos exemplos disso. Parece que, depois da morte da minha mãe, acabou o tempo da redenção e do perdão do ser humano, e no entanto, o mundo já devia ser assim antes da morte dela. Eu é que não sabia.


Os educadores

Para muitos de nós, e segundo Freud, o que vou dizer é absolutamente normal, foi normal desejarmos, vezes sem conta, a morte dos nossos progenitores, de modo a que não ouvíssemos mais raspanetes, não levássemos mais palmadas por comermos doces antes do jantar, não os tivéssemos sempre à perna, a chatear os meninos. Mesmo que não tenhamos histórias complicadas com os pais (como violações, agressões físicas e psicológicas, etc.), os pais são o fulcro da nossa relação com o mundo, são eles que definem as nossas interacções. Em todo o caso, quem nos educa, o que é mais abrangente, e tem em conta os avós, irmãos, e os primeiros professores. São pessoas marcantes na nossa vida futura, sobretudo se a nossa vida futura for vivida com eles em constância, permanência, por opção ou não.
Há muitas coisas que certos pais, certos avós e até certos irmãos nunca entenderão: é que filhos e netos não são projecções fantasmagóricas da nossa própria pessoa. Isso advém de uma coisa chamada apego, que por sua vez deriva da solidão e da frustração pessoal. Se uma pessoa tem um filho só para não estar sozinha na velhice, vai ser o cabo dos trabalhos para o filho dizer «eu quero fazer a minha vida», pois vai-lhe ser exigido que esteja sempre disponível para cuidar dos outros.
Nenhum filho se deveria sentir forçado a seguir o caminho dos pais. Eu acho que muitos filhos não saem aos pais, degeneram completamente, e também não vejo mal nisso, a não ser que estejamos a falar de uma degenerescência totalmente patológica: alguém que se tornou um crápula, contra todas as expectativas. Também há casos desses, de pessoas que, com a desculpa de quererem uma vida melhor, arranjam esquemas para se safarem da vida que tinham. Também não concordo. É importante termos valores morais, podem é não ser os dos nossos pais, e sim os nossos. Podem até ser valores novos, os tempos mudam, é natural que sejam.
Nunca gostei de ver apego. Acho que gera solidão, desamor, frustração. Na velhice, os pais e avós prendem-se aos filhos em estilo «cobrança pela vida que te dei» que não traz liberdade nem felicidade a ninguém. Nem aos pais, que afinal fazem isso porque estão sozinhos castrando a vida dos filhos, nem aos filhos que, castrados, nunca vão ser eles próprios.
Sempre fui muito defensora do sair cedo de casa, exactamente para não gerar apegos deste género. Salvo excepções, quem sai tarde de casa sai frustrado e amargurado, porque deixa pais a caminho da velhice (quando mais precisavam) sozinhos. Se saíssem mais cedo, deixavam pais novos com uma vida pela frente. Claro que depende dos pais e dos filhos. Contrariamente ao que estou a afirmar, estou já em provecta idade para sair de casa. Isso amargura-me, entristece-me, e faz-me ver que, embora as minhas opções se tenham justificado, cobram de mim o que dou e o que não quero dar, para além de continuar a ser tratada como se tivesses dez aninhos feitos ontem, com pessoas a controlarem horários, dormidas, fins-de-semana e boleias. Quanto mais tarde, mais difícil é colocar um travão nos pais-galinha e nos avós-galinha, sempre convencidos de que a descendência é para ser tratada como criadagem. Depois é difícil um filho ou neto dizer que não. Mais até um neto, porque a um velho nunca se diz que não, é como a um maluco.
O impasse das sociedades actuais é imenso: paralelamente a uma cultura que incita à juventude eterna, parecemos querer ser jovens e inconsequentes toda a vida, sem tomar responsabilidades nem rédeas nas coisas em que participamos. Passou tudo a ser um jogo: um jogo de dívidas, sobretudo, de endividamento com cartões de crédito e telemóveis de última geração. Esse jogo perigoso, em que todos queremos ter dinheiro, gerou um monstro muito grande, que vai proliferando: as relações de interesse. Primeiro ficamos o mais possível em casa, interessados em viver à conta dos pais, sem grandes chatices e sem grandes responsabilidades sobre a vida, depois arranjamos um namorado ou namorada com dinheiro, para nos sustentar os vícios, depois casamos e ficamos novamente à espera que o conforto nos caia do céu, sem esforço em demasia. Grandes paixões agitam as almas, e isso não queremos. Um grande amor exige esforço e dedicação ao outro, exige capacidade de encaixe de muitas coisas. E isso não queremos. Somos a sociedade do conforto. Queremos trabalhar sentados, com horário fixo, fazendo pouco ou nada. Queremos ter relações que não dêem trabalho, em que o namorado nos venha buscar a casa e nos pague viagens e jóias caras, não queremos trabalhar por uma relação – isso gasta energia. Somos a geração da rapidez de emagrecimento, de bronzeado «rápido e duradouro», de resultados «imediatos», como se nada desse trabalho desde que tenhamos dinheiro. Estamos a começar a ter vidas pouco originais, quase maquinais e com grande falta de originalidade, em que nos copiamos para superar a falta de imaginação.
Estou muito farta da «betice» dos pais que não querem que os filhos partam de casa, e farta da betice dos filhos que não querem partir para não magoar os pais. Parece-me injusto que não funcionemos como na natureza, em que os pais ensinam os filhos a andar, nadar, caçar e os mandam à vida. Se é verdade que nunca nos divorciamos do papel de pai/mãe e acompanhamos toda a vida os nossos filhos e netos, também é verdade que deixá-los voar me parece frutuoso, a bem da felicidade dos pais e avós, que vêem filhos e netos felizes e têm a possibilidade de apostar noutras áreas da vida sem ser a maternidade ou a paternidade. Aconselho todos os pais a se inscreverem nas danças, em aulas de culinária, em línguas e informática e a deixarem os filhos seguirem livremente a sua vida. Podem não ajudar mais a pôr a mesa em casa dos pais, mas ao menos têm uma ínfima possibilidade de saberem fazê-lo sozinhos, mais do que isso, a comprarem a sua própria mesa com o dinheiro que ganharam. Pode ser que assim anulemos mais vezes a vontade de esganar os nossos pais e avós, todos de uma vez só.


As relações humanas

Mais uma vez me debruço nas relações humanas, tema da minha inteira preferência. Há muitos anos atrás, quando eu andava no 9º ano, talvez com quinze, dezasseis anos, tive de fazer uma escolha profissional. Na altura era um momento crucial (ainda hoje é, para todos os garotos a quem dei aulas do 9º ano parecia ser), e ainda fui fazer testes psicotécnicos, que, quanto a mim, é das piores coisas que se pode fazer. A psicóloga era uma mulher magra, feia, sempre a fumar, muito antipática, que fazia umas listas tipo supermercado a ver quantos pontos tínhamos em cada área (hoje chama-se agrupamento). No meu caso, ciências tinha mais pontos do que letras. Mas eu segui letras, extremamente convencida de que nunca seria boa aluna a ciências, não tinha inteligência nem capacidades. Portanto, segui letras por cobardia, mas também por um profundo amor à escrita. Não era daqueles miúdos com médias baixas que queriam ser médicos. A minha média era a mais alta e, mesmo assim, não me achava capaz de ir para medicina. Se tivesse ido para ciências, seria talvez engenheira química, farmacêutica, bióloga. Mais uma vez por cobardia.
A maior parte das decisões cruciais que tomamos na vida são bastante egoístas, cobardes e pouco relacionadas com o que sonhámos para nós próprios. Se é verdade que às vezes nos enganamos, também é verdade que, muitas das vezes, não escolhemos o que queríamos por não podermos, não querermos ou simplesmente por preguiça. No meu caso foi consciente. Eu queria letras, antes de mais, mas, acima de tudo, eu não me achava capaz de ser médica. Na minha família queriam que eu fosse porque «era bonito», uma razão claramente imbecil. Um médico, um dos bons, nasce feito e depois pratica o ofício. Se só praticar o ofício arrisca-se a dar cabo da vida a muitas pessoas, ou simplesmente a dar cabo da vida a ele próprio.
Anos mais tarde, a minha avó continua a dizer que eu devia ter sido médica porque lhe receitava medicamentos de graça. Tenho a certeza que, se tivesse seguido a carreira, teria sido um grande problema para mim, porque me veriam como a milagreira, a curandeira de pais e avós. E isso nenhum médico é, muito menos quando um doente não se quer tratar. Teria gritado o dobro com os meus avós, ter-me-ia chateado o dobro ou o triplo com os meus pais, e, estou certa, as mesmas pessoas estariam mortas, na família. Um médico não faz milagres, muito menos a gente teimosa.
Há uns anos tive uma depressão que me ajudou a perceber que sou, essencialmente, uma mulher de letras. Tudo me impressionava, perdi capacidades de gestão das emoções, fui-me completamente abaixo e tinha vontade de gritar com todas as pessoas que comprimiam a minha liberdade – e que, infelizmente, ainda comprimem. Tinha ataques de pânico e ainda passei uns meses valentes a medicamentos, que nunca me curaram das causas das doenças, nem das mazelas. Tudo continua cá. Como poderia eu ter sido médica, se não sei gerir as minhas próprias emoções? Sem isso, ninguém ajuda o próximo.
Ainda por cima, se eu fosse médica, unia isso àquilo que mais gosto de estudar: as emoções, os relacionamentos entre as pessoas. Ao fim e ao cabo é aquilo que menos compreendo e é aquilo que é menos compreendido nos livros. Essa parte é toda a nossa vida, é o fulcro que dá ânimo e move o resto. Se estamos a sofrer, se somos mortos-vivos sem destino fixo, o nosso corpo vai abaixo, definha, perde forças, deprime e comprime tudo. Quase todos os problemas têm a sua raiz e explicação nesta parte, exceptuando casos em que de facto não podemos relacionar uma coisa com a outra.
Ao longo da minha vida, tenho observado atentamente as pessoas e concluído que, na sua maioria, as pessoas fazem o contrário do que querem, no fundo de si mesmas. Têm empregos de que não gostam e para os quais nunca apresentaram qualquer vocação, têm maridos e mulheres que lhes diminuem a auto-estima, apesar de terem sonhado com príncipes e princesas encantados, vivem em casas que nada têm a ver consigo mesmas, têm famílias que aturam contrariadas. Poucas pessoas são verdadeiramente livres, e por isso poucas são verdadeiramente felizes. Conheço meia dúzia. As pessoas mais frágeis escolhem companheiros e companheiras que lhes fazem mal, que transtornam e tranformam aquilo que são para pior. Quase sempre, na vida, ganham as pessoas interesseiras, desligadas das emoções. Não conquistam por amor. Mas também não sofrem por amor nem pela falta dele. Certamente não são estas que consultam psiquiatras nem psicólogos.
Quando eu tive a depressão, concluí que era muito frágil. Apercebi-me, pela primeira vez na vida, que esse era o meu patamar vivencial e não passava dele. Tenho poucas relações de persuasão, interesse, custo-benefício, o que quiserem chamar. Tenho poucas relações vazias, que não me façam pensar na vida, no futuro, no amor, na conquista. Não estou a dizer que isto é certo ou errado. Há que pensar com honestidade…o que ganhamos com a sinceridade, a bondade? Ganhamos amizades fantásticas, conquistamos um amor sincero, todavia não derrotamos o inimigo. As pessoas maldosas continuam maldosas, tornam-se ainda mais pérfidas connosco, se for preciso, porque bondade é sempre associada a palermice, e conquistam à mesma um grande amor, embora normalmente por dinheiro ou outro interesse qualquer.
Aparentemente, a vida faz cada vez menos sentido. Enquanto uns casam por interesse e têm tudo o que querem, outros casam por amor e pedem o divórcio. Enquanto uns mimam os filhos e os filhos são uns crápulas, outros batem-lhes e eles tornam-se doutores. Enquanto mulheres sem-vergonha, prostitutas desenxabidas, fazem sexo por dinheiro, outras dedicam-se de corpo e alma a um homem sem coração. Enquanto uns homens não ligam aos sentimentos da companheira, outros ligam demais e são enganados sem nunca vislumbrarem a verdade das coisas. Enquanto damos importância a pessoas que nos enganam, não ligamos a pessoas de coração limpo que passam na nossa vida. Enquanto uns ganham fama de mentirosos e falsos sem o serem, outros nunca têm o rótulo e são de facto mentirosos de corpo e alma.
Somos nós que nos dirigimos para caminhos errados, ou foi a vida que nos levou por aí? Quando é que damos conta que a vida não é nada do que sonhámos? Eu dei-me conta quando saí da faculdade. Não tinha emprego, a minha mãe morrera há pouco tempo, fiquei encarregue de muitas coisas que nunca quis, fui sempre esmagada por ideias e estereótipos, comparações estúpidas aos outros. Até hoje, nunca saí de casa e conto com quase trinta anos. É frustrante. Chegada a esse ponto, tive de me preocupar com outros assuntos, tive de desenhar outros sonhos no horizonte.
Não existem potes de ouro do outro lado do arco-íris. Existem umas moedas de ouro pelo caminho, que ora espreitamos ora nem vemos. Uns sabem recolhê-las ardilosamente, outros nunca chegam a perceber que elas estão lá. Somos todos seres humanos sem livros de instruções. Só podemos saber uma parte de tudo, diz um ditado africano. E na verdade, ninguém sabe tudo. Há vivências que custam muito.
Olhando para trás, o quanto eu não gostaria de ter sido médica. Psiquiatra. Ouvir horas a fio pessoas diferentes de mim (ou não). As pessoas são as suas emoções, espelham esse mundo desconexo. O quanto eu gostaria que algumas pessoas me dissessem que encontraram moedas de ouro no caminho, e que eu contribuí para essa descoberta. O quanto eu gosto de ouvir as pessoas que têm emoções sinceras a expressá-las. Só cinco anos depois da morte da minha mãe compreendi que esta é a minha grande vocação: observar, estudar o riso e o choro das pessoas, compreender as emoções. Perante toda a raiva que sinto, diariamente, pelas injustiças de que sou vítima (e vejo os outros serem), fecho-me muito nas minhas próprias emoções, tentando explicá-las, verbalizá-las, escrevê-las. Sou uma romancista, no sentido de traçar os percursos das pessoas pelas emoções. Mas não sei apontar caminhos, limito-me a descrevê-los e a julgá-los. Moralizo demasiado.
Como médica, teria de me habituar, ab initio, a ver morrer, a ver casos desesperantes, pelos quais nada há a fazer, a ver casos sem solução, e a conviver com a injustiça do mundo, que é a de uns terem tanto, sendo tão pouco merecedores, e outros terem tão pouco, lutando a vida toda por isso. Como pessoa, tenho todos os dias de aprender a lição de sofrer e ver sofrer tentando aprender com isso, de ser injustiçada e de ver injustiçados a cair nas mãos de gente inescrupulosa. Tenho de me habituar que nem sempre há perdão ou redenção para toda a gente. Tenho de perceber que nem sempre os maus são castigados e nem sempre os bons têm recompensa.


«A Descida»

Acabou o mês de Maio. Apesar de os amigos continuarem a ser amigos, agora já não vou falar tanto deles e vou-me dedicar a outros assuntos. O filme «A Descida», que classifico como um dos filmes de terror melhores que já vi, fala também de amizade. Da amizade pura e da amizade falsa, arrependida. O filme fala de um conjunto de raparigas, umas amigas desde há muito, outras recém-chegadas ao grupo, que fazem desportos radicais (uns mais do que outros). A sua especialidade, para a qual estão, aparentemente, preparadas de forma exímia, é escalar montanhas e fazer descidas a grutas (é mais provável que um grupo de raparigas juntas vá às compras ou faça despedidas de solteira, mas enfim…). Corajosas e destemidas, as raparigas encontram-se passado um ano da tragédia que uma delas sofreu, ao perder o marido e a filha num acidente de viação. É esta mesmo que, aventurando-se por onde não devia, fecha a entrada principal da gruta. Presas no subsolo, as raparigas descobrem que a organizadora da expedição, Juno (de origem oriental) resolvera explorar as grutas por nunca ninguém lá ter ido, não levando mapas nem sabendo se a gruta tem outra saída. Perante o dilema e o pânico entre todas elas, dá-se a vulgar culpabilização umas das outras nestas situações.
Aparentemente, o inimigo é a própria gruta e a incúria (mais a hybris grega, o orgulho desmesurado, a tentativa de ultrapassar os seus próprios limites) das raparigas, mas na realidade o inimigo esconde-se no subsolo: um animal estranho, que ora aparece sozinho ora aparece aos magotes, mistura de homem, lagarto e morcego. Cego, o animal orienta-se pelo movimento da presa (não percebi bem se o faro lhe serve para alguma coisa, porque quando as meninas ficam quietas o monstro não faz nada), caçando carne nas redondezas e levando para a gruta. As raparigas chegam à conclusão de que o monstro leva esses bocados de carne por uma outra entrada, afinal marcada por antigos exploradores, provavelmente mortos ali.
Para além do despique feminino e das acusações típicas entre mulheres («fizeste isto para teu gáudio», «a culpa é tua, querias o teu nome na gruta», etc.), há um outro despique de fundo que só no fim se descobre (embora haja diversos indícios, para um espectador atento): Juno andara com o marido da amiga recém-enlutada (lá estou eu a esquecer-me de nomes), era amante dele, e, parvalhona, em vez de disfarçar, leva um fio ao pescoço que o comprova - burra da Juno! - sobressai no filme, todo ele passado no escuro e na sujidade, a coragem das mulheres, que em vez de vítimas passam a predadoras, embora percam a luta contra o inimigo, também não se ficam, atacando-o como podem.
Em situações extremas vê-se também quem é amigo de quem e quem estava a fingir, hipocritamente, ser amigo. Vence quem é, aparentemente, mais fraco, mas também quem tinha padecido do pior (um luto), e por isso se transforma numa lutadora sem tréguas e numa vingadora implacável (esta parte já é típica dos filmes americanos).
Talvez não seja um filme muito original, à excepção de o núcleo de heróis/vítimas serem só mulheres. Monstros já vimos, filmes passados em buracos e cavernas também. A diferença é que em filmes como «Aliens», «A Caverna», «O Predador» todos vão armados, mas neste caso não. A surpresa é um factor constante. Também a força física e a destreza das raparigas (sem homens por perto, ok?), a coragem, a lucidez e a força de vontade. Como uma mulher deve ser.


Os especiais

Se acharmos sempre que todos somos «especiais», de alguma maneira, vamos sublinhar o mundo todo da mesma cor. Se é verdade que somos sempre especiais para alguém, sobretudo os nossos pais (se a relação com eles for saudável seremos sempre especiais no seu coração), não é verdade que todos sejamos pessoas especiais, no sentido em que normalmente utilizamos a palavra: especial enquanto original, especial enquanto diferente da maioria das pessoas. Se todos fôssemos especiais, não poderíamos ser diferentes uns dos outros. E somos. Muito.
Maio é um mês fora do comum, porque especialmente dedicado a todos aqueles que eu considero especiais. Há muitos amigos e pessoas especiais das quais não falei, mas fiz uma selecção baseada também nos acontecimentos do mês, porque felizmente há muitas mais pessoas de quem eu poderia falar.
Há no entanto uma grande quantidade de pessoas a quem aplicamos o termo «especial» num sentido bastante diferente: especial de mau feitio, de mau carácter, de distante, de maldoso. Não sou amiga deste tipo de pessoas, mas sou obrigada a conviver com muitas que se enquadram muito bem nesta categoria. Se ser especial é ser diferente, o que dizer de uma pessoa que só imita as outras? Calculo que ser especial não seja copiar os outros, ou passar por cima dos sentimentos das pessoas como se nada fosse e dormir à noite como um bebé, de consciência tranquila. Digamos que este «ser especial» ou esta «especialidade» não faz parte daquilo que mais aprecio nas pessoas. Melhor ainda, esta «especialidade» é exactamente aquilo que não gosto, nas pessoas. Assim como detesto comprar uma caixa de morangos lindos com um todo podre lá dentro, assim ajo com as pessoas que conheço. No meio de dez pessoas, há uma completamente podre. Por vezes as pessoas que rodeiam permanecem quem são, são os morangos intactos, no entanto há outros morangos que, ao encostarem-se, apodrecem. Desses que apodrecem, uns ficam só com uma parte tocada, outros ficam completamente podres e não nunca mais são comestíveis. Isto aplica-se às pessoas que, estando junto de pessoas «especiais» de mau carácter, desenvolvem um carácter mimético, similar, ou põem simplesmente a descoberto o que já tinham. Ou então, fazem do seu carácter o carácter do outro.
Assimilar carácter parece um conceito estranho, mas depende da nossa capacidade de sermos influenciados. O casamento é das maiores causas de assimilação de carácter, mas a educação também. Quantas vezes não nos damos com pessoas que sabemos que não são daquele modo, mas a educação transformou-as «naquilo»? Quantas vezes não temos amigos que mudam completa e radicalmente no dia em que conhecem o seu «príncipe encantado» ou «princesa encantada»? Uns mudam durante o tempo que dura a relação (e se mais tarde recuperarem os amigos vão com sorte), outros mudam de forma irremediável, para sempre. É óbvio que sabemos que tudo tem o seu tempo. Não podemos considerar sequer a hipótese de ficarmos iguais toda a vida, mas devíamos ser mais autênticos. A relação deve servir para pôr a nu a autenticidade, não escondê-la, não deixarmos nunca de sermos nós próprios, fiéis a uma natureza que provavelmente reprimimos e não querermos mostrar.
Em nome de muitas coisas não palpáveis, como os sentimentos, fico calada muitas vezes em situações desonrosas e que me entristecem. Mas poucas vezes me perco naquilo que realmente sou. Não vou abdicar de princípios para agradar ao próximo. Não me parece real. Não vou cegar porque amo. Não vou aceitar nem tolerar porque as outras pessoas querem e acham bem. Este pensamento não é do tempo da minha avó, que sempre calou, reprimiu, disfarçou, e para quem as aparências são o fulcro da vida. Odeio profundamente aparências. São como as cascas da cebola, depois de muitas camadas, lá está a cebola (hoje as analogias com comida estão a ser profíquas!), mas até lá, muitos cortes têm de desmembrar as partes de fora da cebola. Por vezes descascamo-la e lá está o âmago: podre.
Admiro profundamente quem não se perde, não se corrompe. Não se deixa cegar por nenhuma luz ofuscante. É verdade que nem sempre podemos exigir isso das outras pessoas: nem todos têm essa maturidade, essa sabedoria. A maior parte de nós é corruptível, esventrável. Mas uma minoria, aquela que mais passa despercebida, é dona de um carácter inimitável e incorruptível. Eu sou um bocado corrupta. Tenho ficado calada em nome da boa educação e do respeito para com o vizinho, mas muito angustiada, exaltada e tenho-me sentido prostituta dos meus sentimentos, muito pouco autêntica. Isso perturba-me. Não me deixa dormir nem viver em paz. A isto chama-se consciência. Nos dias que correm, tê-la também é especial.