Monday, May 29, 2006


O casamento da Paula

E pronto. Maio a terminar, a Paula a casar. Foi o casamento do mês, para mim o do ano, não tenho agendado mais nenhum.
Tenho de ser franca, e já o disse muitas vezes. Odeio casamentos. Quebram o fim-de-semana, está sempre muito calor ou muito frio, são festas longas, intermináveis, com cenas risíveis que se repetem ano após ano. Nada supera o casamento a que a Patrícia foi, em que um senhor, possuído por ganas do diabo, atirou amendoins e rebuçados às pessoas à porta da igreja (mas que se passa na cabeça das pessoas?). A isso eu ainda não assisti, mas vou esperando sentada…
Eu e a Patrícia já decidimos que casamentos com festa não. É muito bom ver os amigos todos reunidos – calculo eu, que sou muito dada a reuniões de amigos – ou talvez ser a estrela da festa, com flaches fotográficos simultâneos, como as estrelas de cinema. Mas o resto é muito dispensável. Um dia inteiro de vestido e sapatos à cinderela, o noivo vestido à pinguim o dia todo, sem poder tirar a gravata, os convidados cada um mais excêntrico do que o outro, mas sobretudo…os rituais estúpidos e pouco higiénicos, como beber champanhe do sapato da noiva ou arrancar a liga com a boca. Espera-se sempre que os convidados não se embebedem até ao coma, e as convidadas tragam cuecas, para poderem cair de cu sem mostrar as partes íntimas. Cenas de apanhados nos casamentos é o que há mais. As figuras que as pessoas fazem para apanhar o bouquê deixam qualquer um de boca aberta. Quedas, escorreganços, desmaios súbitos de noivo e/ou noiva. Casar não parece ser coisa para qualquer um. Pelo menos não para mim nem para a Patrícia Mânfia.
O casamento da Paula não teve nada disto. Os convidados portaram-se bem (embora uns dancem melhor do que outros…), bebedeiras e cuecas à mostra não (pelo menos que eu tenha visto), nem rituais estranhos. Basicamente o casal explicou aos convivas como se conheceram, a razão do seu amor, e a base de tudo: a família e os amigos, através de fotos projectadas. Tudo foi sóbrio e conveniente, como a Paula e como o João, sem descambarem para a lamechice. A menos sóbria foi a Tembwa, que levava um vestido pornográfico e gritou «BRINDE!!» para todos se levantarem, mas esteve muito dentro da normalidade e do aceitável, tendo em conta o que eu descrevi da Tembwa no post anterior. Eu também ia mandando vários tralhos, por ter arriscado levar sapatos de salto agulha mesmo com joanetes (quem me manda ser parva?).
Só que um casamento ao domingo tem destas coisas…hoje é segunda e mal abro os olhos. Imagino como está quem ficou na festa…
Se eu casasse fazia um menu só para mim e para a Patrícia, com tofu, seitã e diversos vegetais (sem tempero). Não há direito de se discriminar vegetarianos ou tratá-los como extra-terrestres. Não comer carne é saudável e recomenda-se. Mas a Patrícia nem se pode queixar: foi tratada como uma rainha que não come carne, teve um prato só para ela de vegetais, queijo e maionese (não comeu porque leva ovos), e todos os empregados lhe vinham perguntar se era preciso mais alguma coisa. Como ela própria disse, foi um casamento fashion, bastante moderno, com um chefe de mesa parecido com o Paulo Gonzo (mas mais magro e novo), que servia exclusivamente a mesa dos noivos, só depois as nossas eram servidas pelos outros empregados. Não desfazendo todos os outros casamentos a que fui, aos quais fui, naturalmente, por franca amizade com os nubentes (ou não iria), este foi o que mais gostei, pela simplicidade e bom gosto, pelo toque clássico, pela ausência de convivas, bêbados e malcriados, a fazerem-se às moças solteiras. Claro que joguei em casa: estive sempre rodeada de amigos, e tenho a sorte de conhecer e gostar muito da família da noiva (hoje esposa…lindo nome!). Tudo foi genuíno, daquilo que conheço dos intervenientes. Se há pessoa que sempre quis casar assim, com bom gosto, simplicidade e a Ave Maria cantada quando entrasse na igreja foi a Paula. E se há pessoa de bom gosto é também o João, que escolheu a Paula para sua mulher.


Tembwa, a estrela

Costumo pensar que todos os meus amigos, por serem meus amigos – ou assim terem sido escolhidos – são cromos irrepetíveis na minha caderneta das amizades. Há aqueles amigos que surgiram logo, os primeiros cromos. Os que vieram depois, os segundos cromos. Os cromos que, por não serem coerentes com a moldura da caderneta, saíram. Os cromos muitos procurados por serem raros. Os cromos porreiros, que estão lá de coração, mas pouco colados à caderneta, escorregam muitas vezes para fora dela. Os cromos diários (como o pensinho higiénico «pequeno, pequeno, dobrado em bolsinhas, suave, suave»). Os cromos inesquecíveis, os novos cromos lançados no mercado, originais e cómicos. Sempre adorei cromos. Sempre adorei terminar uma colecção de cromos, mas, que me lembre, nunca consegui terminar nenhuma. E na vida é o mesmo. Deixo sempre espaço aberto a novos cromos, sem esquecer os anteriores, os que mais gosto, os que e marcaram a sair das bolsinhas, reportando à minha analogia, não esqueço a forma como algumas pessoas surgiram na minha vida, repentina e eficazmente, e lá ficaram.
Por exemplo a Tembwa. É um cromo daqueles que toda a gente gosta de ter na colecção: divertida, simpática, mimética, anedótica. O palhaço da turma, mas inteligente nas piadas, não se limita a debruçar e cuspir da janela, como os miúdos-palhaços fazem. Felizmente a Tembwa conhece consequências. Pelo nome os leitores diriam que ela é preta, mas não. As origens dela são do Lubango (Angola), mas é madeirense, e branca, claro, ou nem tinha nascido na ilha do Alberto João (sim, a ilha é dele).
A Tembwa diverte imenso. Tem piadas tão boas que até os mortos se levantam das suas campas para aplaudir! Conhece realidades estranhas (como pessoas que introduzem coisas estranhas nos órgãos – isto para não ter de dizer que metem pepinos e garrafas de cerveja Sagres no cu ou na vagina), que conta e completa com muito sentido de humor, e, apesar de não suportar agulhas, conta os desmaios dela como se fossem espectáculos do Seinfeld. A Tembwa tem muito mais graça do que o Herman José. Ah, já agora, é Tem-bw-a ou Tem-bwa, não Tômbola, Tábua, Tébola, Tubo, Tomba, Tômboa, Tromba, Trampa, Trompa…ok? Tembwa significa Estrela, o que só mostra que a mãe dela a conhecia bem antes de ela nascer e dignificou o seu nascimento desse modo soberbo. Quem dera eu chamar-me assim…já ninguém me confundia mais com a Fernanda-da-Muleta. O nome português é Bárbara, mas ela jura que nada tem que ver com Tembwa. Bárbara é mais negativo, porque Santa Bárbara é uma mártir (como todos os santinhos), morta numa torre (é representada com uma torre na mão) numa noite de trovoada, por isso ficou como sendo a protectora das pessoas em noites de trovoada (contou-me a minha avó). Tembwa e Bárbara são a antítese uma da outra. A Tembwa é a estrela e a Bárbara a rainha da trovoada (Tembwa e Tricia, esta interpretação só prova que fui a todas as aulas de pessoanos! Pessoa…Pessoa…Pessoa). Portanto, em última análise, a Tembwa terá um lado mais luminoso e outro mais chuvoso, como toda a gente. Só que nem toda a gente desenvolve o lado luminoso com a mestria com que ela o faz. Até foi ao programa do Goucha contar anedotas, o que, quanto a mim, desvirtua um bocado, mas faz parte da maneira de ser dela. Tanta extroversão acaba sempre nos programas do Goucha…
É difícil sermos tão engraçados como ela, num mundo escuro e obscuro, de cinismo e de hipocrisia. Eu sei que digo sempre isto dos «cromos» que me rodeiam. Mas são perfeitos. Cada um com o seu enquadramento específico. Ou eu sou uma pessoa muito organizada nas minhas amizades, ou creio ter tudo o que preciso, pelo menos nesse campo. Sinto que cada uma das pessoas que me rodeia faz parte de uma ordem (divina, superior ou normal, eu não sei, nunca falei com Jesus Cristo, nunca lhe perguntei). Não que as pessoas sejam perfeitas ou tenham vidas perfeitas. Eu também não sou assim, nem tenho essa pretensão. Mas os meus cromos fazem sentido num mundo (exterior e interior) cada vez mais confuso e dilacerante, cada vez mais hipócrita, cada vez mais assente em relações «que dão jeito», o que em Portugal significa «relações-cunha».
Os meus amigos não são como prédio pré-fabricados, feitos de materiais de merda, a abanar por todos os lados (boa metáfora para os meus dentes!), construídos para ocupar espaço e alguém lucrar com isso. Têm bases, têm estrutura e conteúdo. São prédios de luxo, de muito (a)preço, caros (em todos os sentidos), situados em jardins no paraíso. Espero que estejam sempre onde eu os conheço, onde eu os sei existentes, porque a vida é demasiado curta para os amigos tipo prédios pré-fabricados, ou para os conhecidos, ou para quem se aproxima de nós por indiferença, interesse ou qualquer outro sentimento mesquinho. Por isso, num mundo de construções desmesuradas e frágeis por dentro, os amigos, mesmo que poucos, são um luxo a manter. O tempo para eles nunca é desperdiçado nem amaldiçoado. É um bem precioso.


O vegetarianismo e a Patrícia Mânfia

A Patrícia Mânfia faz parte do meu grupo de amigos mais chegados. Faz parte da fornada 1977: como eu, a Paula, a Lina, a Ângela, a Tembwa, o Jorge, a Diana. Eu acho que foi uma fornada espectacular. Até 1977. 1978 já foi um ano de merda. Depois os anos 80 são bons. Foi a fornada da Patrícia Patrícia, amiga muito mais recente.
A Patrícia Mânfia é muito especial, desde a faculdade que noto isso. Mas o especial dela foi-se refinando, como ela própria, foi crescendo, e também se foi radicalizando. Gosto quando as pessoas não cedem e se radicalizam. Parece-me inteligente, desde que não fiquemos inflexíveis e não deixemos de acreditar. Mas quer eu quer ela deixámos de acreditar, há muito tempo, em muitas coisas, a saber: a) que todas as pessoas são bem intencionadas ou «não fazem por mal». A vida provou-nos exactamente o contrário. Quanto mais velhos, mais gente cínica conhecemos, mais traídos somos nas nossas expectativas de vida, pelas pessoas e por muitas outras coisas. b) que um dia tudo fica bem. Eu e a Patrícia sabemos que não existem tesouros ao fundo do arco-íris. Talvez não faça mal acreditar nisso. Mas nós não acreditamos que velhas ordens se recomponham. Podem aparecer, isso sim, em forma de uma nova ordem pós-caótica, mas que nada tem a ver com a anterior. Por isso não temos vidas nada parecidas àquelas que tínhamos na faculdade. c) que perder as pessoas é das maiores lições de vida que temos de aprender a gerir, sobretudo se essas pessoas nos orientavam e eram parte integrante do nosso coração. d) que podemos perder tudo de um momento para outro, e isso é muito difícil de aprender. Mais uma vez, aprendemos que rapidamente a ordem estabelecida, ou a tentativa de o fazer, pode gorar, ruir. E) não acalentamos grandes expectativas quanto às pessoas. Só dá desgostos desnecessários. Sabemos que as outras pessoas nem sempre pensam ou sentem o mesmo que nós.
Para além de tudo isto, sabemos que a carne faz mal à saúde, que vai podre para o estômago e demora dias a fazer a digestão. A diferença é que a Patrícia se fez vegetariana, e eu (ainda) como carne. A Patrícia tem princípios que a orientam bastante saudáveis, ao contrário de mim, que com joanetes e escoliose fico o dia todo (mal) sentada, por isso vou piorando e fazendo as coisas cada vez mais cansada como se fosse o fim do mundo. Mesmo agora, que gosto muito do que faço, que puxa pelas minhas capacidades intelectuais. Este tipo de rectidão da Patrícia agrada-me muito, e não são falsos elogios. Nunca gostei de hipocrisia. Ela é recta em tudo, até mesmo no que come. O que ela come é o espelho dela própria: escolhido a dedo, alimento a alimento, para fazer parte dela. Tenho o maior respeito por quem se disciplina a este ponto.
Tudo o que esteja sujo a Patrícia limpa (casa-de-banho da Ângela incluída, mas isso foi há muito tempo…), não vive na porcaria e na desarrumação, como eu. Com as pessoas é o mesmo: detesta a mediocridade. Não vive na coscuvilhice, na arrogância, no falso pudor. Diz o que pensa. A coerência dela é uma mais-valia. Hoje em dia muito pouca gente é coerente. As pessoas agem conforme lhes dá mais jeito.
A casa da Patrícia revela o interior dela: a ordem. O que nela é desordenado e imperfeito está bem arrumado no seu canto. A Patrícia não aspira à perfeição de carácter, nem gosta das pessoas que aspiram a perfeições (uma vez que é uma hipocrisia), nem gosta de ser exemplo para ninguém (é inimitável).
Num mundo virado do avesso, em que cada um faz o que pode para vencer sem olhar a meios, ela faz as coisas com a mestria e a rectidão que empresta à vida. E eu gosto muito disso. Por isso ela é minha amiga. Por isso tantas outras pessoas não são nem nunca serão minhas amigas. Porque sem carácter, sem coerência, somos um poço sem fundo.

Sunday, May 14, 2006


À transparência

Eu sei que tudo depende da perspectiva. Que ter perspectiva é que explica a maior parte dos nossos julgamentos, acusações, considerações, críticas. O que é errado para mim pode não ser para outra pessoa. Mas há valores que me parecem óbvios, universais.
Apesar de eu acreditar que somos energia, e isso tem prova científica, não acredito no lado-de-lá, na vida para além da morte, na transmigação das almas, na reencarnação, e o karma nem sempre faz sentido. Então em que acredito eu? Acredito na transparência. Há inúmeras pessoas que não têm transparência nenhuma, ou seja, não se consegue ver através delas, nem ver o que elas são de facto. Pode ser uma forma de se protegerem, ou simplesmente um desconhecimento de si mesmas, e portanto, se não se conhecem, que imagem dar aos outros? Tem de ser uma imagem fabricada.
Outras pessoas deixam ver a sua natureza pelas atitudes, pelo olhar, pela naturalidade (ou falta dela) dos gestos, das emoções, da forma como tocam nas coisas. Basta olhar e estarmos atentos. Não sei se este é um exercício muito, pouco ou nada importante. Mas é interessante. Podemos olhar e tentar perceber e até escrever a história daquela pessoa, mesmo que forjada. Talvez seja assim que se escreve um romance.
Andem de transportes públicos, vão a lojas, viagens, passeiem, olhem bem. As pessoas dizem quase tudo através do olhar. A maior parte das vezes vejo imenso cansaço, imensa angústia, imensa infelicidade. Outras vezes solidão. E encontro neutralidade nas pessoas que se tentam esconder e cujos pensamentos não descortino. Não sei se estou sempre atenta à realidade, ou se eventualmente terei sexto sentido, mas regra geral olho e vejo quem é feliz, quem tenta ser feliz mas ainda não é, quem é infeliz e já desistiu, e finalmente quem é miseravelmente infeliz e está perdido. Acham difícil? Não é.
Porque é que algumas pessoas transmitem confiança e sabedoria e outras transmitem uma profunda desilusão, logo na primeira impressão? Porque é que umas pessoas estão enformadas numa cápsula invisível na qual sentimos que nos podemos apoiar e outras não têm isso? Porque é que algumas pessoas só abrem a boca para agredir os outros? Insegurança, antipatia, indiferença? Certamente os sociólogos e psicólogos terão estudado estes fenómenos muito melhor do que eu. Mas eu acho que a energia das pessoas diz muito sobre elas. E também acho que há muitas pessoas que não sabem disso. Outras sabem e até fazem jogo-sujo.
Em 2001 a minha mãe morreu. Não parece ter nada a ver, eu sei. Mas a morte da minha mãe tornou-me consciente, clarividente das minhas fraquezas e das dos outros, à minha volta. Consigo ver coisas que dantes não via nem supunha ir algum dia ver. Hoje sei coisas com uma certeza inigualável. Sei que algumas pessoas são bem intencionadas, mas sei que há pessoas monstruosas, em dimensões inimagináveis, rebuscadas e retorcidas na sua natureza. Apetece-me destruir raivosamente os intentos dessas pessoas, mas sou uma incapaz, condenada ao inferno de ver e não dizer. Lembra-me sempre a paixão de dois amigos pela mesma mulher, mas um não conta ao outro para não magoar.
Quando a minha mãe morreu, eu tive a sensação que todos os filhos que perdem os pais (por mais tarde que seja) devem ter: o mundo desabou. Mas a realidade é que eu sobrevivi, por isso fui obrigada a aceitar a viver com aquilo a que chamamos «consequências». Não escapei ao sofrimento, nem à dor, nem à depressão, nem à desilusão, e a partir de certa altura, mesmo cansada, não tentei escapar, simplesmente aceitei que faz parte da vida e é um dos grandes ensinamentos da mesma que temos de aceitar causas e consequências, e que o merecimento, na forma como o aprendemos, nada tem que ver com isto. Porque eu sinto que ela não merecia mesmo nada morrer. Porque eu sinto que não merecia mesmo nada perdê-la. Porque eu sinto que o mundo tinha a ganhar com ela, mais do que ela ganhou com o mundo. Nessas alturas tenho muita vontade de acreditar em Deus e pedir-lhe uma justificação plausível ou espetar-lhe um murro na tromba. Mas não acredito em Deus há muitos anos e não é agora que vou acreditar.
Talvez como os gregos eu tenha assimilado a energia da minha mãe…quem dera. Não tenho metade da força dela perante as adversidades, e começo seriamente a pensar que é melhor assim. Não tenho força e aceito isso. Não sou ela. Nem como ela. Nem isso me pode ser exigido. Talvez perceba melhor algumas opções dela porque fiquei num lugar bastante ingrato, presa à vida que ela tinha, presa à vida que eu não quero nem nunca quis. Presa, simplesmente.
Bem vistas as coisas, toda a gente que viva uns anos perde alguém: um amigo, a mãe, o pai, um irmão. Ninguém inteligente e sensível sai incólume de uma perda dessa dimensão. Gostamos das pessoas, isso é que faz de nós verdadeiros seres humanos, na dimensão maior e mais poderosa. O amor. Por isso me intriga tanto…quem somos sem o amor? Uma pessoa sem amor, de auto-estima e pelos outros, é um cadáver de sentimentos, um morto com pernas e braços, um coração batente de falsidade. Essa falta gera a maior parte das atitudes mais negativas que temos, para nós e para os outros. Não falo do politicamente correcto. Muitas pessoas enchem a pança sem nunca terem sabido o que é o amor, na verdadeira acepção da palavra, o deslumbramento afectivo por um amigo, uma viagem, um sonho, um livro, um namorado. Sem nunca fazerem nada pelos outros. Outras pessoas vivem à flor da pele. Como eu. Vivo em permanente angústia, mas também vivo em permanente deslumbramento pela vida. A falta de amor transtorna-me. Sinto-me levada a pensar que muitos seres humanos são monstruosos, maldosos, ou então herméticos: nunca foram trespassados pela paixão, pelo fulgor, pela paz de espírito, pela sabedoria. Isso vê-se à transparência e as pessoas não sabem. Mas num olhar dizem tudo.


S.A.W. I e S.A.W. II

Para apreciadores de filmes de terror, são dois filmes brilhantes, sob todos os pontos de vista: suspense, emoção, terror puro e duro, efeitos especiais e um jogo tenebroso no qual nos sentimos enredados do início ao fim. Quem dera que todos os filmes de terror fossem feitos com este objectivo, mas hoje em dia são filmes repetitivos, saloios, de talho. Já não temos «Aliens» ou «Predadores», uma coisa verdadeiramente nova e surpreendente. Hoje, os filmes de terror são também baseados em jogos de computador (como o «Resident Evil»), ou em velhos filmes, vendas lendas (como o Drácula ou o Lobisomem). Não são originais.
Mas S.A.W. é original, mais original que o «Seven», por exemplo, embora a encenação, a teoria por detrás do filme seja a mesma: o castigo pelo pecado humano. No caso de «Seven» os pecados estão identificados e devidamente punidos, cada morte corresponde a um dos pecados, e qual das mortes a mais surpreendente e dura de aceitar. O clímax do filme, o final, é a pior e a mais dura morte de todas. Acabar mal também é um conceito que caiu em desuso. No final, o esforço do herói costuma ser recompensado, mesmo quando o herói está todo partido e em más condições para continuar, é um herói. Mas «Seven» acaba mal, percebe-se que o herói não vai recuperar daquela punição. E em S.A.W. não há redenção, ninguém é bom, ninguém é recompensado, daí a dureza do filme e da sua sequela, igualmente brilhante. O tempo e o espaço contam muito: tudo se passa em pouco tempo, umas horas, nem chega a um dia, e os espaços são mínimos, somando o espaço subjectivo da memória. Todos saem mal, todos saem punidos, e, embora gostando de punir os outros, o próprio serial killer é dos mais originais da história: um doente terminal de cancro que, sentindo a injustiça do mundo sobre os ombros, vinga-se de quem despreza a vida não padecendo de nenhuma doença. Embora seja um assassino cruel que não inspira qualquer simpatia, embora as razões dele sejam irrazoáveis, apetece tantas vezes fechar crápulas em salas de tortura e confrontá-los com aquilo que são, de facto, punindo-os pelos pecados do orgulho, da inveja, da preguiça, da cobiça, da luxúria e da gula. Também conheço quem seja assim e não sofra de porra nenhuma. E tenho raiva. Tenho raiva de pessoas com tanta sorte e tão pouco tino. Não posso punir essas pessoas, nem tenho instintos de serial killer, mas a maior parte dos dias espero que a vingança venha num prato frio e eu ainda cá esteja para ver…


As coisas que eu gostava de saber fazer

Shopenhauer tinha razão. O homem é o grande causador da sua angústia, da sua infelicidade. Para ele, a felicidade é a ausência de sofrimento, a supressão da própria angústia, mas como quer sempre mais, está sempre à procura, está sempre só, está sempre descompensado. Em vez de pensarmos naquilo que sabemos fazer – e são inúmeras as coisas que sabemos fazer, contando com as inatas (como respirar, mexer) – se tivermos saúde podemos aprender a fazer praticamente tudo. Podemos aprender línguas diversas, podemos ler mapas, podemos bordar, podemos escalar montanhas, podemos ser intelectuais, podemos inventar. Evidentemente, se levarmos a vida fechados num sítio qualquer a fazer o que não gostamos, o mais provável é nunca fazermos nada do que realmente queremos.
Admiro muito as pessoas que aprendem tudo rapidamente e sabem fazer tudo e mais alguma coisa. Não sei se é um dom se é, afinal de contas, a normalidade, porque passamos a vida a queixarmo-nos e a não tentar aprender coisa nenhuma. Há realmente pessoas com muito jeito (ou atrevimento, como um dia me disseram) para aprender tarefas como cozinhar, dançar, falar línguas, tricotar uma camisola, desenhar, pintar, tocar um instrumento, cantar, contar anedotas. Na realidade, estou a citar tarefas que me sinto totalmente incapaz de fazer – algumas nem me atrevo a tentar – e que levam à tal angústia estúpida que Shopenhauer citava. Ainda por cima sobre a mulher recai aquele estigma de ter de ser boa dona de casa, e ainda bem que cada vez mais mulheres admitem ser uma nódoa na cozinha ou nas limpezas. É o meu caso. Os meus pratos são insípidos e deslavados e a casa está sempre um nojo, porque sou preguiçosa, desarrumada e pouco dada a tarefas caseiras. Ou seja, o contrário que a sociedade reclama que uma mulher deve ser. A minha vontade de ser mãe anda pela estaca zero, e não tenho paciência para os mitos da beleza e do bem vestir. Outra coisa que não sei fazer: vestir-me bem. Às vezes olho para algumas mulheres e invejo-as bastante, não por serem bonitas, elegantes ou bem feitas, mas por terem feito escolhas adequadas no vestir. Não percebo que cores me «assentam» bem, que formas, que calças, por isso aposto no conforto. A mim parece-me lógico. O ideal para mim seria andar como na tropa: sempre igual. Como uma colega da faculdade que só vestia blusas brancas. De vez em quando apetece variar, na verdade, mas sinceramente não me agrada o tempo que se perde a escolher, a procurar, a adquirir.
Também penso muitas vezes que não tenho jeito para nada. Tenho talentos pequenos e invisíveis, que me parecem exactamente iguais aos de toda a gente. Raras vezes me sinto especial. Acho que qualquer pessoa faz o que eu faço muito melhor do que eu. Por razões que desconheço, esperava ter nascido com um cérebro como o do Einstein, com a capacidade de estudar emoções do Freud, com a voz da Aretha Franklin, com a escrita e a visão política de Nadine Gordimer, ou mesmo de conseguir correr como a Rosa Mota. Ou seja, gostava de ter talento, mas um talento de exigência e dedicação. Por isso a Paris Hilton não está incluída na conversa.
O budismo defende uma ideia contrária à que estou a apresentar. O budismo defende que é a anulação deste sentimento egocêntrico que nos faz felizes. Por isso somos tão felizes quando anulamos o pensamento «não sou capaz, mas aquela pessoa é», quando deixamos de invejar para simplesmente respirar o ar que nos rodeia e olhar as flores do campo, como fazia o Caeiro. Estamos demasiado centrados em nós próprios, e isso leva a duas coisas: à infelicidade suprema de nunca encontrarmos caminho nenhum ou actividade alguma que nos satisfaça, ou à felicidade falsa e absurda de acharmos que somos brilhantes, quando estamos muito longe disso.
Talvez o verdadeiro talento seja aprender a viver sem talento nenhum especial. Sermos iguais, sendo diferentes uns dos outros.

Saturday, May 13, 2006


As viagens

Não sou tão prendada como a Patrícia Patrícia, por isso não sei fazer fotolog, mas é pena, muita pena mesmo. A viagem a Barcelona foi um estoiro (ou estouro) em cansaço e diversão, quando ficamos naquele estado-coma maravilhoso a suar em bica por todos os lados, a carregar água, mas a ver tudo avidamente, como se fosse a primeira vez. O que eu gostei de Barcelona…acho que a elegia como cidade para viver, apesar de Roma ser mais apaixonante para mim, talvez por defeito de formação académica, Roma ficou-me na memória pelo Coliseu e pelas colunas de Trajano, pelos gémeos alimentados pela loba (Rómulo e Remo), pelos imperadores loucos como Nero, que mandou incendiar a cidade. Mas Roma é confusa, tão confusa que mete dó. É preciso sorte para não se ser atropelado seja pelo que for: camiões, pessoas, bicicletas, turistas de todos os países. E é sempre assim em todas as alturas do ano: há que fugir para os arredores, que nem sempre são melhores. Não imagino Roma com carrinhos de bebé, sacos de compras, crianças pela mão. Roma é turística, e só se apresenta recatada para o clero. Além disso, conheci Roma em trabalho, não faço ideia de muitas coisas de que me falam como «pontos a visitar».
Barcelona parece perfeita para viver uns tempos. As coisas têm, pelo menos, ar de funcionarem. É uma cidade endinheirada, também, e isso conta muito. O metro é gigante e quem lá vai e anda de transportes tem de estar preparado para suar. Há escadas por todo o lado. Os meus quatro dias de férias ficam marcados por escadas, escadas, escadas e mais escadas. Mas com grande satisfação posso dizer que foram férias tão gigantes quanto as escadas, pelo menos em valor afectivo. E isso é que atribui o cunho à viagem. Nunca gostei de coisas insípidas nem pessoas insípidas que copiam as viagens dos outros. Uma viagem é única em trajecto, aventura e companhia. Sobretudo na companhia. Eu nunca quero visitar os lugares que os outros já visitaram, por muito sensacionais que sejam, deixo-os para o fim da lista. Parece que o facto de os outros contarem as coisas com emoção transfere para mim esse sentimento repetitivo de «é muito bonito». Claro que inúmeros amigos me contaram inúmeras histórias acerca de Barcelona e eu queria visitá-la há muito muito tempo. Mas guardei-me. Se alguém meu amigo tivesse ido, recentemente, a Barcelona, eu já não ia. É como me contarem um filme. Eu já não vou ver se me disserem «tens de ver, é fantástico». Eu já não leio um livro se me disserem «tens de ler, esse livro mudou a minha vida». Sou por natureza uma individualista.
Em tudo conta a circunstância. Roma teve uma circunstância. Barcelona teve outra. E, em 2003, S.Tomé teve outra muito diferente. Em 2004 a Madeira. E, há muitos anos, em 1999, Londres também me marcou muito.
Para além das circunstâncias, o que mais marca as viagens que fazemos são as companhias que escolhemos. E eu sempre fui uma privilegiada, porque sempre tive bons companheiros de viagem. Escolho-os a dedo, confesso, salvo excepções de pessoas que, por algum motivo me foram impostas e de quem não gostei. Mas foi raro isso acontecer. Gosto de viajar com amigos empenhados em ver, aprender, conhecer. Ninguém gosta de ficar com o cu gordo sentado a ver televisão o resto da vida. Certamente a vida é mais que isso, mas infelizmente nem sempre nos é possível concretizar as viagens dos nossos sonhos, graças à falta de dinheiro, de tempo e até de espaço para enquadrar as viagens nas nossas vidas, muitas vezes patéticas e solitárias, muitas vezes rodeados da mesquinhez do próximo e nada mais. Nesse campo, não ter a possibilidade de viajar torna-nos mais fechados. Pensamos que só existe Portugal e o resto é notícia de televisão.
Nas viagens, as pessoas que estão connosco são importantes, mas de igual modo as pessoas que encontramos no país de destino também acabam por nos marcar e deixar saudades. O povo de S.Tomé, da ilha das Rolas, era tão fantástico e simpático, tão humilde que impressionava. A afectividade brotava de uma maneira simples. Havia a angústia da pobreza material, ali encarada como um mal necessário, constante, e totalmente consciente. Mas havia a certeza da riqueza espiritual, do património outrora português, da mestiçagem, das danças, gastronomia e arte africanas. Deixou-me saudades os pretos me tocarem na pele para ver se eu era verdadeira e para eu dar sorte, simplesmente porque era branca e mulher. Pareceu-me uma coisa nova para quem vive encaixotado num apartamento nos arredores de Lisboa a vida toda. Eu era especial. Marcou-me o menino que nos fez uma vénia para passarmos. Esse momento deixou-me lacrimejante, e eu não sou nada lamechas nessas coisas.
Em Roma marcaram-me as japonesas gostarem de fotografias ao lado dos cadáveres apanhados pelo Vesúvio, em Pompeia, dos cães andarem atrás de nós, à cata de comida. Marcou-me a confusão, o caos, mas também a simpatia e a delicadeza das pessoas que tentavam entender o que eu dizia, perante a minha frustração de não entender a língua italiana. Gostava muito de atravessar, diariamente, o Vaticano, muito de manhã, em que só eu, as freiras e os polícias andavam ali. Quando chegava ao Arquivo Secreto, por mais cedo que fosse, havia lá sempre um estrangeiro ou um padre que chegava primeiro do que eu. Gostei muito de oferecer bombons aos senhores do Arquivo Secreto, porque apesar de não falar a língua deles, a simpatia é claramente universal e vence a barreira da formalidade, que tanto prezamos em casos destes.
Não gosto de viagens em série, em fotocópia. Embora entenda que aqui em Portugal as coisas estão estruturadas para o país parar em Agosto (nem há onde fazer compras, o talho fecha, a peixaria fecha, os cafés fecham, etc.), adoro tirar férias quando ninguém tira (se puder), os preços são mais em conta e não está toda a gente caída na República Dominicana, no Brasil, na Madeira, no Algarve ou, em caso de extrema pobreza, nas praias da linha e da Costa da Caparica.
Sempre gostei do caminho que os outros não fazem. A menos que seja um caminho claramente errado, vale sempre a pena a diferença. A alegria de ser único nas nossas escolhas, inimitáveis pela sua própria natureza de partilha e de sedução. Se formos todos para os mesmos sítios, acaba por ser melhor andar em centros comerciais, todos ao molho, visitar as lojas que nos aconselharam e comprar em série.
Por Maio ser o mês dos amigos (assim eleito pela minha pessoa), Maio é o mês da doçura e das viagens fantásticas ao paraíso que, bem lá no fundo, existe dentro de todos nós. Paraíso que não se pode copiar, mesmo que se tire fotografias aos mesmos sítios, mesmo que se filme os mesmos sítios, mesmo que se visite as mesmas coisas. As pessoas que nos acompanham não são as mesmas, as coisas não têm para nós o mesmo valor afectivo. A repetição tornou-se um mal, porque deixamos de nos enredar na cultura de um país para ficarmos enredados em turistas, máquinas fotográficas e de filmar, e recordações iguais umas às outras. Porque será que nós, seres humanos, gostamos tanto disso? Gostamos tanto de ir às mesmas praias, nos mesmos dias, de ir a Punta Cana, Benidorme, Palma de Maiorca, quando temos mais dinheiro ou nos sujeitamos mais ao endividamento? Porque raio é tão caro ir a sítios lindos como Bazaruto, Cambodja, Ilha das Rolas, Kilimanjaro? Já agora, sabem onde fica? Eu só sei porque gostava de lá ir, sou uma nódoa a geografia. O meu mapa são os sentimentos. Só fixo muito bem um lugar se me apaixonar por ele, senão esqueço-me, confundo-o, fixo a minha atenção noutras coisas, noutras histórias.
Fico triste quando me tentam copiar uma viagem. Parece quando na escola me roubavam um trabalho, uma ideia, um lápis de cor. Porra! Uma viagem é uma viagem. É única. Não se repete. Conhecem o Botulho? Fica em Tondela, Viseu. Raras pessoas conhecem o Botulho, é o destino de férias menos procurado e, quanto a mim, tal como a Sertã, é radioactivo, ninguém com a cabeça no lugar vai a esses sítios gélidos no Inverno e tórridos no Verão. Mas é o melhor lugar do mundo, bem como o Caramulo (esse é mais turístico), não só pela paisagem, mas pelas pessoas, pela comida, pela minha amiga Ângela. O Botulho fica no coração, com o seu conjunto de habitantes tipo árvores dos patafúrdios, preparados para coscuvilhar e mandar bocas a quem não põe os pés na igreja nem nas procissões, como eu. O Botulho não tem nada para ver. São casas, um adro, uma igreja, um café, um supermercado onde não gosto de ir porque me conhecem. O Botulho é uma viagem única e não aparece em nenhum roteiro turístico. Por isso, as viagens únicas são aquelas que não estão nos roteiros turísticos. São as viagens dos nossos corações. As viagens únicas fazem-me com amigos, com amor, com espiritualidade e suor. Estão pejadas de problemas e de conflitos, de cansaço, de muita água, de pneus furados, de metros e autocarros cheios, de pés doridos e partidos, de gente descabelada, de conflitos linguísticos. Não interessa Roma, Amsterdão, Berlim, Barcelona, Madrid. Interessa com quem vamos e por que vamos. Interessa por quem vamos. Se por nós, se pelos outros, se por ninguém, se para contarmos que fomos, se para gastar dinheiro, se para contabilizar viagens e dizer «tenho muita experiência de vida», se para visitarmos os mesmos sítios que as outras pessoas visitam, «só porque sim». Decididamente, tudo tem uma razão. Uma viagem não é um acaso.


Memórias de Sofia

Não me lembro do 8º ano com muitas saudades, mas tenho de ser franca, foi uma época engraçada. Eu nunca gostei da adolescência, nem de ser adolescente, nem de me enquadrarem na «idade do armário» ou «idade parva». Mas a verdade é que, à distância, e bem vistas as coisas, eu era muito estúpida. O que eu lia nas revistas estava certo. Por isso mesmo cheguei a lavar o cabelo com azeite e ficar a escorrer óleo o dia todo. Coisas da idade…
Nada se compara àquele 8º ano, e a Sofia lembra-me disso sempre que estamos juntas, porque é das poucas amizades que mantive desde esse tempo. As nossas vidas deram voltas e mais voltas, mas curiosamente, ainda somos amigas. Ou talvez possa dizer voltámos a ser amigas, porque as pessoas mudam muito. Todavia, há qualquer coisa que se manteve dentro de nós, desde esse tempo. Talvez dentro dela com mais persistência, se calhar porque tem mais saudades desse tempo do que eu, ou se calhar porque é uma pessoa mais coerente do que eu. Mas a nossa ingenuidade, em muitos campos da vida, manteve-se intacta.
Nessa altura das nossas vidas, em que consequência era só uma palavra difícil do dicionário, todos tiveram alcunhas, algumas menos simpáticas, e algumas bastante parvas, como convém à idade. O Luís Peixoto era o «biomassa» porque o cabelo dele parecia uma mistela diversa de gordura e porcaria (logo eu, que punha azeite no cabelo, a gozar com o rapaz), a Luísa era a «leguminosa», graças aos «nódulos» em que o cabelo da rapariga terminava. E depois havia o aparelho fixo que ela tinha nos dentes e que não lavava. Mesmo depois de tirar o aparelho o cheiro perdurou. Eu e a Sofia éramos péssimas, ainda hoje gozamos, mas tivemos o castigo merecido, ela usou aparelho e eu perto fiquei (o meu cabelo também não evoluiu grande coisa desde esse tempo). O Pró-alimentar também nos seduzia: gordinho, fartava-se de correr de um lado para o outro e de suar em bica. Era de fugir…E O Gabriel abria a mala e arrotava lá para dentro, queixando-se à directora de turma das «gotículas mal-cheirosas e do bocado de carne assada» que o prof de história lhe lançava logo pela manhã. Lembramo-nos sempre da profª de Português e Francês, com sotaque afrancesado e ainda por cima do Porto a dizer ao rebelde da turma, o Nuno: "Vais pra fora da sola de oula plas unhas!"
Temporalmente passaram mais de dez anos. Tínhamos 14 e já estamos quase nos 30. Mantemos a garotice, a parvoeira, a idade do armário. A Sofia ainda é mais divertida do que eu. Deixei-me levar pela amargura da vida, mas confesso que me sei divertir quando quero. Ela é um pó compacto e eu um pó solto. Ela é a base e eu o blush. Dou cor às memórias dela. Há outra coisa que eu sei: ela ainda me cospe ice-tea em cima quando se ri…

" O sucesso leva-te onde o carácter não te deixa ir " (Anónimo) e o elogio à amizade franca da Patrícia Patrícia, que fez anos há pouco tempo

A frase não se pode atribuir a ninguém, tanto quanto eu saiba, mas é enigmática quanto baste. Sucesso tem uma semântica muito diferente da sua origem etimológica. Vem do latim «sucessus», e nos seus primórdios significava tão somente conclusão, fim, resolução, ou mesmo parto, nascimento. Hoje em dia, sucesso significa conseguir alguma coisa e ser reconhecido por isso (eu ia dizer um sinónimo, êxito, mas a palavra também tem uma origem etimológica diferente).
O sucesso é uma coisa muito pouco natural, extremamente superficial, quanto a mim. Eu demorei muito a perceber isso. Sempre fui boa aluna e cheguei ao final do meu curso com notas bastante abaixo daquilo que eu considerava o meu nível. Era eu que tinha expectativas altas e estava desfasada da realidade ou não tive sucesso? Depois veio o desemprego. E a seguir a vida que eu menos queria: viver em casa anos e anos e anos a fio. Será que me posso considerar frustrada nas minhas expectativas ou simplesmente uma pessoa com pouco sucesso? Talvez a frase deste anónimo esteja correcta, e eu simplesmente tenha carácter a mais, por isso há patamares que nunca atinjo. Na realidade, se queremos construir uma vida «limpa», sem lamber as botas a ninguém e com alguma sensibilidade para com o próximo, há muitos tipos de sucesso que nos são inacessíveis por inteiro. O sucesso da Paris Hilton, por exemplo. Deve-se a…ninguém sabe. Nasceu rica, é rica, muito parva, e parece não precisar de fazer mais nada. É considerada uma mulher de sucesso.
Na grande maioria dos casos, nem o sucesso advém do carácter nem o carácter advém do sucesso. Evidentemente que há excepções. Há casos em que o sucesso advém do carácter. Mas na maior parte das vezes, o sucesso advém da falta dele. Pelo menos na acepção comum de sucesso. Chegar ao topo parece de génio, mas é mais de lambe-cus do que outra coisa. Quem chega ao topo com a força do seu próprio pulso e luta por causas justas, tarde ou nunca é reconhecido.
Quando andamos na escola, quem é um sucesso? Os miúdos populares, que se vestem dentro dos parâmetros estúpidos da moda, ou que têm amigos igualmente populares, ou namorados/namoradas de sobra. Na escola isso é sucesso. Não é o palermóide de notas altas, nem o menino brilhante de aparelho que toca pífaro genialmente, nem o obeso que engole mais chocolates e pizzas (esse só é popular nos EUA). Hoje em dia, quem são os meus colegas que mais sucesso tiveram na vida? Provavelmente os menos estudiosos. Os outros inscreveram-se no concurso de professores e deram em pessoas esgotadas e depressivas.
Naturalmente que podemos interpretar sucesso de uma forma menos cruel. Sucesso pode ser tão somente sermos reconhecidos como boas pessoas, ou ter amigos, ou superar problemas de forma exemplar. Sucesso pode ser apenas ter inteligência emocional. Não pensem que é fácil. É preciso termos muita consciência do que somos, do que sentimos, saber gerir isso, e entendermos qual é o QE das pessoas que nos rodeiam. Como eu digo sempre, há muita gente convencida que tem grande QE, mas é tão sensível como um calhau. Sucesso pode ser apenas aquilo que faz de nós pessoas inimitáveis, ou dificilmente imitáveis, porque Chico-espertos há muitos, somos sempre passíveis de uma imitação. Mas como diz a Patrícia Patrícia (minha amiga cujo nome se repete na ânsia de lhe repetir qualidades, duplicando-as), só é imitado quem tem valor e gera admiração, em suma, quem tem sucesso. Vejam como as raparigas querem ser a Paris Hilton.
Imitar não revela carácter, quanto a mim. Só inveja (exceptuando o caso da arte, em que imitação pode revelar bom gosto, sofisticação). A inveja é chata para quem sente porque gera a ira, mas também para quem sofre o dito «olho-gordo», porque se sente amordaçado por aquela ira invisível. Quantas pessoas que recebem promoções (vistas sempre pelos outros como fruto de sucesso) não são amaldiçoadas, torturadas, deixadas sozinhas? Quantas amizades não se perdem por isso? A verdade é que uma amizade perdida por causa da inveja é uma amizade pouco sólida, na qual não vale a pena investir. É uma amizade sem carácter, e por isso sem sucesso.
Gosto das amizades como a da Patrícia Patrícia (e até há duas na minha vida, mas a outra é mais conhecida como Patrícia Mânfia). São amizades de carácter e de sucesso, para perdurarem e fazerem das pessoas melhores pessoas. Talvez a amizade espelhe a nossa vida. Talvez os amigos sejam o nosso espelho e nos possamos, com alguma segurança, reflectir nele para sabermos se somos ou não pessoas de sucesso. Sendo assim, se tivermos uma vida em boa companhia, que mais sucesso poderemos desejar? Lição ensinada pela Patrícia Patrícia.


Maio, o mês dos vencedores

Com Maio a florir, e esperando que não chova porque em breve irei visitar Barcelona, vou fazer deste mês um mês cor-de-rosa. Não ao estilo do Goucha, não me confundam. Mas vou fazer pequenas crónicas (só durante este mês, prometo) dedicadas aos meus amigos, sem naturalmente falar das vidas pessoais de cada um, uma vez que o blogue não é a Caras. Este vai ser um mês florido, em que espero esquecer-me do meu nariz entupido, das dores de dentes do mês passado, dos óculos pesados que tive de usar e dos fins-de-semana e feriados em casa. Também espero esquecer-me que tenho uma escoliose normalítica há muitos anos, que me dá cansaço e umas dores desgraçadas nas costas, pensando que no futuro esta coluna se endireitará, depois de muita ginástica. Vou pensar que a minha tese de mestrado estará terminada em Junho, e portanto não terei de pagar 500 euros em Julho, por multa, visto que estou fora do tempo. E vou pensar que sairei de casa o mais breve possível, e que ninguém vai levar isso a mal nem achar que eu só faço opções erradas nesta vida. Vou finalmente ter os 29 anos a que tenho direito. Serei adulta naquilo que interessa (a emancipação), e uma verdadeira criança, para me poder divertir sem medo de falhar na expectativa dos outros. Vou esperar que ninguém tenha intenções funestas comigo nem com aqueles que me são caros.
Durante este mês, vou tentar inverter, ligeiramente, - que um gajo nunca foge à sua própria natureza – a tendência cinzenta do blogue. Este vai ser o mês da utopia, até porque esse é o tema da minha tese.
O final de Abril já tinha trazido a Frol de volta, que me propôs um blogue só sobre anões (estou a reflectir sobre isso). A Frol voltou e não foi presa pela Gestapo, como temia o amigo Chaparro; e o mês de Maio trará o Eduardo, com notícias das terras de Vera Cruz, de um sítio cunho nome assusta e alegra ao mesmo tempo: Uberlândia.
Vou tentar não me lembrar (apesar de não esquecer) dos anos que passei com o mês de Maio incendiado pela dor e pela morte, da minha mãe, do meu avô, de amigos meus, que apesar de nenhum ter falecido nesse mês, Maio fez a ponte e definiu-lhes a sorte dos meses subsequentes. Vou pensar que apesar da dor, sou uma privilegiada em lembrar isso com lucidez e vontade de viver. E isso também se deve aos meus amigos.